domingo, janeiro 6

sala de espera

sentei -me como ditavam todas as regras e compêndios de boas maneiras e sorri como me tinha ensinado a tia adélia: não sorrias explicitamente, margarida, jamais sorrias explicitamente. e logo acrescentava a avó luísa: aliás ,menina, nunca faças nada explicitamente.

então, eu fiz tudo como se ainda ali estivessem aquelas duas hirtas mulheres instruindo-me. a saia composta, as luvas retiradas delicadamente. uma encenação perfeita. palmas invisíveis no meu peito, quase estremeço, quase, mas... ah, a compostura.foi por um triz.

sinto a cara mais quente, mas penso na tia adelaide e na avó luísa, as duas mortas, tão compostamente mortas... as mãos em disposição seráfica, os anéis com um brilho honesto e cirscunspecto e até um certo blush nas faces. o blush, lembro-me de entrar no velório e de reparar nas caras contristadas de quem lá estava ao me verem ali, sapatos de verniz aprumadamente pretos. alguns temiam o meu choque quando as visse, mas lembro -me apenas do blush nas faces. um blush explícito , mais carregado do que em qualquer hora na vida daquelas duas.

não sei porque lembro disto agora, não gosto de esperas, fazem-me sempre pensar em coisas desagradáveis. explicitamente desagradáveis. o doutor aparecerá dentro em pouco, creio. a recepcionista não pára de me olhar e isso confunde-me. não tenho nada que mereça ser olhado, apontantado, lembrado.

só talvez a minha extrema e grande ausência de explicitude.

as minhas unhas estão bonitas, poderei pousá-las na secretária do doutor sem embaraço. eu podia suspirar neste momento, mas não quero que a recepcionista olhe ainda mais para mim, mas .... ahhhh que vontade de suspirar eu sinto.

o doutor casou-se faz em abril três anos e foi uma linda cerimónia. usei um vestido circunspecto mas elegante, rosa chá, e o colar de pérolas da avó luísa.

a recepcionista está a ler uma revista. ela é demasiado explícita. tirou os olhos de cima de mim e agora sou eu quem a pode olhar. não o farei, contudo, seria demasiado explícito. olho as minhas unhas, como estão bonitas... talvez falte um anel, devia ter posto um anel na mão esquerda. a seguir sou eu a entrar... detesto estas esperas.

uma vez não me foram buscar à escola e fiquei sozinha com a última das empregadas que era gorda como não se pode ser gordo e me deu um copo de leite abarrotado de açúcar que me deixou enjoada.

até hoje, quando vejo pessoas gordas fico enjoada e com sabor de leite muito açucarado na boca. ser-se gordo é excessivo.

respiro o mais fundo que posso e quase suspiro. queria suspirar. ou talvez fumar. acho que eu poderia ser elegante, fumando. a moça levantou-se da cadeira. não, não pode ser, ela vem para aqui... o que quer ela comigo? eu não tenho nada para lhe dizer e recuso -me falar da espera , do tempo, da política ou de bordados.

viro-lhe cara, é isso , vou virar-lhe a cara. as horas...pergunta-me as horas e agradece com um sorriso. as pessoas gentis irritam-me porque temos de ser gentis com elas. não quero contratualidades com estranhos.

aaaa , doutor , tanta demora assim... não entendo... não gosto de esperas. fazem-me pensar sem ter controlo sobre o que penso e acho isso muito desagradável. quase que fico excessiva.
sabe doutor? tenho muito medo de ficar excessiva... é preciso manter um distanciamento seguro, cultivar uma frieza dinâmica nas relações, não acha doutor? doutor, diga qualquer coisa, interrompa-me, peça um esclarecimento. penso demasiado, corro o risco de começar a pensar demasiado.não quero âmagos, não quero aproximações.

quero viver em mim tão aparentemente como as maõs que arranjei para vir aqui e dispô-las sobre a mesa.

sim, doutor?sim?pode interromper?sim?

2 comentários:

ronin disse...

oba, que delícia, adorei!

bartleby disse...

Trés trés trés beaux!

Kantianos