domingo, março 27

«Apaga a luz. Guarda-me os óculos.Obrigado.
Como se chamava o homem da lavandaria,
o que trazia sempre a roupa trocada
e um dia trouxe uma camisa dele próprio
e a deixou ficar lá em casa mais de um mês
à espera que a mandássemos outra vez para lavar,
a ver se a recuperava?
( Ao fim de cinco semanas,
a mulher perdeu a paciência
e veio por ele e pela camisa, que ainda
estava dentro do saco de plástico
no guarda-fatos; era igual à minha, azul,
talvez de um azul menos óbvio, mas de qualquer modo, azul).
Lembrei-me dele porque
quando morreu tu disseste:
«Coitado, pode ser que acerte
com o caminho do céu!»»
Tinha uns óculos de lentes grossíssimas,
e não me admiraria que a sua morte
tivesse sido, mais que a morte, algum erro de paralaxe.
Agora, sem óculos, como saberá ele
se está vivo ou se está morto?»


Manuel António Pina, Poesia Reunida, p. 202 Assírio e Alvim

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