segunda-feira, fevereiro 2

As Pessoas Felizes

«Depois de alguns anos de casada, Nel verificava que cometera um erro ao pretender fazer um homem feliz; e que o acertado seria fazer três ou quatro desgraçados.»

Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 181

«Nel pensava que se ama muito mais quando se esquece o desejo de amar. Para o europeu, o amor tornara-se uma forma de imaginação, ainda que desacreditada; assim como a morte. Era uma imaginação que produzia tanto mais angústia quanto ameaçava extinguir-se como causa dinâmica. Só parecia persistir no ser humano como outra experiência litigiosa confinada à sensualidade.
A paixão, movimento em que o amor se absorve mas não actua como um pretexto da sensualidade, não possuía qualidade a ser devassada. Surgia de assalto; primeiro como uma proposta inumana, depois como desastre da consciência. Desenvolvia-se como uma doença, alucinava os desprevenidos, desgraçava os fortes, corrompia os orgulhosos. O processo da paixão, detectado em diferentes culturas humanas, na fúria das bacantes, nas celebrações tribais, nas imunidades que a guerra promete, a paixão tudo contamina, tudo enlaça, projecta e transforma. »

Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 49

Nel reparou que Maria devia ter já quarenta e cinco ou quarenta e seis anos. O lábio superior era franzido como o das velhas impertinentes e beatas. Mais algum tempo, e ela esquecia tudo aquilo, porque a paixão tem uma duração própria, como uma febre ou o efeito de um tóxico. Porém, a composição duma droga, por exemplo a cannabis, a sua acção nas dores menstruais ou o seu carácter alucinógeno, eram conhecidos da farmacopeia e da polícia dos costumes. A paixão, não. Talvez certas tribos abordem o seu conhecimento ao chamar-lhe amok, ou transe bacante, ou coisas assim. Talvez o ritmo negro dos tambores ou a mensagem dos blues se refiram a isso. Mas o europeu está tão divorciado do seu inconsciente quanto se projectou para a superfície da natureza, onde a vida é mais rápida e onde o seu metabolismo não consente as interpretações da profundidade e do tempo.


Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 176

Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos e sabemos que o dia seguinte é fundamental para que os nossos desejos se cumpram.

Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 7

Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos, etc, etc. Este sentimento de confiança arrebatadora desarticulava-se, perdia a relação com tempo, os pensamentos, as pessoas. Nel percebia que alguma coisa devia ser feita para que a sua formidável certeza se recuperasse. O seu apelo ao subconsciente de todo o mundo estava, no entanto em declínio.

Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 193

- Não achas que há demasiada literatura e pouco ar puro?
- E tu para que queres ar puro? O cheiro dos campos matava-te, não estás habituada. E é tarde para todos nós nos habituarmos»

Agustina Bessa Luís, As Pessoas Felizes, p. 194











1 comentário:

Menina Limão disse...

pois, as pessoas felizes. convenceste-me a ler este livro e depressinha.

Kantianos